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quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Sobre Doação e Doadores de Sangue

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A qualidade do sangue ( hemoderivados e hemocomponentes ) melhorou acentuadamente no Brasil. Há hemocentros operando com indiscutível padrão de excelência, entretanto, questionamentos primais seguem em reticências...

-Que modelo poderá garantir à população brasileira menor perda ou desperdício de sangue e maior segurança a doadores e receptores, não apenas a grupos restritos da maior importância, como os hemofílicos, mas a pacientes hospitalares em geral? 
-De que modo o ensino médico e a residência poderão garantir o aprofundamento e permanente atualização dos conhecimentos clínicos sobre a hematologia e a hemoterapia? 
-Como garantir o suprimento de hemoderivados no país?


Basta uma rápida leitura dos noticiários ou uma ida aos hemocentros (onde a demanda por "hemoprodutos" é sempre muito superior a oferta) para perceber a gravidade do problema.

A complexidade do ato da doação, por um lado, e os fortes vínculos de sangue na sociedade brasileira, por outro, compõem o binômio que talvez permita entender as razões da falta crônica de sangue em nosso país.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que 2% da população sejam doadores.  Existem dados que apontam um percentual de apenas 0,7% para o Brasil (por outro lado, 6% da população inglesa são doadores regulares). Pior ainda, doação no Brasil é também uma questão de classe: em São Paulo, 65% dos doadores provêm das classes baixas (C e D, na classificação do Instituto Gallup). 
Um ponto que merece destaque é o número proporcionalmente elevado de doações 'vinculadas', isto é, de pessoas que estão repondo o sangue recebido por algum parente ou amigo. Na hemorrede, as doações de reposição representam até 80% do total. Este dado é preocupante, pois 20% a 25% delas não passam nos testes e têm de ser descartadas. Ao passo que, entre doadores espontâneos, apenas 8% a 10% têm o sangue rejeitado. 
O Brasil necessita, portanto, de mais doadores e, particularmente, de doadores voluntários de todas as classes sociais...


-Será que nós brasileiros somos pouco altruístas? 
-Esta característica estaria dissociada de nossa cultura nacional? 


Nos Estados Unidos, onde os blood drives dos últimos trinta anos elevaram de muito a proporção de doadores regulares, onde é fácil estabelecer nexo entre o caráter nacional e a 'generosidade' da população norte-americana. Um indicador é a conhecida filantropia em larga escala, praticada por instituições, milionários e cidadãos de alguma posse nos EUA. 


-Ora, seriam os brasileiros menos filantropos? 


Não conheço estudos quantitativos sobre a filantropia no Brasil, mas não creio que sejamos 'menos' filantrópicos que outros países, apesar do desestímulo fiscal. (Nos Estados Unidos, como se sabe, cada níquel doado tem sua contrapartida de dedução fiscal para o taxpayer.) 

Há várias hipóteses para explicar a falta de bons doadores e de doadores em bom número no Brasil. Se desconsiderarmos a possibilidade de uma cultura 'não-filantrópica', há algumas explicações alternativas. Uma delas foi defendida pelo professor Danton Chamone: "Ao contrário da Europa, o Brasil nunca passou por guerras e grandes catástrofes. Na Europa, a cultura de guerra provavelmente ampliou a tradição de doar sangue voluntariamente. O papel do sangue como salvador de vidas parece ainda pouco claro na cabeça do brasileiro." A hipótese é atraente, mas paralisante pois já que não tivemos guerras devastadoras, só nos restará conviver com a falta crônica de doadores?

O clássico de Richard Titmuss, The gift relationship: from human blood to social policy, revela toda a gama de sentimentos que acompanham o ato de doação: a compaixão, a obrigação moral, o altruísmo, a necessidade de aprovação social, a expectativa de reciprocidade etc...


-Como se sentirá o doador brasileiro? 


Desde logo, assinale-se que nós médicos pouco entendemos da psicologia do ato transfusional e da doação, em particular. As unidades de coleta têm nos enfermeiros e assistentes sociais seus atores mais importantes e com mais sensibilidade no trato com o doador. 


Ao se tratar de uma doação tipicamente altruísta (na qual desconhece quem receberá seu sangue), creio que o doador terá sentimentos confusos e contraditórios, pois os brasileiros, particularmente das elites, associam sangue a laços de sangue, a laços familiares. 
Doação, para as classes média e alta, em particular, é uma questão de família, "sangue não é bem de troca, o sangue é como se fosse jóia de família".

Em Raízes do Brasil, o maravilhoso Sérgio Buarque de Holanda (que citei em minha ultimo "post" deste blog) nos deu a chave para entender o difícil trato dos brasileiros para com a esfera pública, sua tendência a reduzir as exigências da sociabilidade e da solidariedade social a uma mera questão de família. Os vínculos de afinidade criam-se menos em decorrência do convívio social no terreno da 'civilidade' do que do convívio e dos interesses de 'sangue', de natureza familiar. A sociedade patriarcal, nossa formação histórica centrada no poder da grande família proprietária de terras e escravos, criaram esta espécie de filtro da sociabilidade: toda ação social que não passar pelo estreito crivo dos interesses de sangue será descartada. O homem "cordial" brasileiro, é justamente o tipo que pauta sua conduta social pela esfera do íntimo familiar e do privado.

Ora, a doação de sangue genuína, —que é a doação altruísta não vinculada, exige um tipo de sociabilidade aberta, livre das amarras dos laços primários. Isto pode significar que a vida social de um país em que predominem os laços da afetividade ( familiares ) sobre os da civilidade poderá conviver com diversas formas de altruísmo, mas a doação de sangue será uma das formas menos difundidas de comportamento altruísta. Isto vale particularmente para os abastados, dos quais se poderá dizer que preferem perder os anéis para não perder o precioso sangue.

Portanto, como médico hematologista e militante na tragédia diária da "falta de sangue", imagino que o foco é (também) promover campanhas e ensinamentos nas escolas, em todos os níveis, que ressaltem o valor da doação como ato generosa e genuinamente social...


Sonho morar num Brasil onde seja parte do cotidiano de todos a doação regular de sangue...


Que tenhamos fibra e sangue para isso!!!


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