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sábado, 9 de junho de 2012

Sobre a Anemia e a Foice Racial.



Todos sabemos que as doenças não só têm importância médica, como também fortes simbolismos sociais e culturais. A maneira como as enfermidades são percebidas e descritas influencia o modo como elas são diagnosticadas e tratadas, assim como a estigmatização dos pacientes.

As hemácias em formato de foice -“falciformes”- foram descritas pela primeira vez por James B. Herrick, em 1910, em um paciente negro, criando um primeiro paradigma étnico.
Em 1923, o pediatra Virgil Sydenstricker publicou um artigo chamando atenção para o fato de a doença ser familial, afetar igualmente os dois sexos e provavelmente acometer apenas pacientes negros. A partir de então, firmou-se no cânone médico a conexão entre anemia falciforme e “raça negra”.  A associação inicial da doença com uma “raça” teve conotações políticas e ocorreu como parte do fenômeno de “patologização” do negro americano, bem descrito por Melbourne Tapper em seu livro In The Blood: Sickle Cell Anemia And the Politics of Race (“No sangue: anemia falciforme e a política racial”).

Posteriormente, na década de 1970, a conexão foi adotada paradigmaticamente pelo movimento negro americano, em especial pelo cardiologista Richard Williams no seu livro Textbook of Black-Related Diseases (“Livro-texto de doenças do negro”). É curioso que o co-autor de Williams nesse tratado tenha sido nada mais, nada menos que Martin Luther King, que não era médico. Sua participação nos remete à importância social e cultural das doenças e às conseqüências da forma como elas são percebidas e apresentadas. 




Entretanto, a despeito das "evidências" históricas, a distribuição populacional da anemia falciforme e especialmente a sua maior prevalência em indivíduos negros tem nada a ver com "raça" ( ou muito melhor referido: com fatores étnicos ).  Apenas na década de 1950 ( !!! ) que verdadeiramente foram comprovados os dados da associação entre malária e anemia falciforme, quando o médico inglês Anthony Allison identitificou, em Uganda, que crianças heterozigotas falciformes tinham 76% mais chances de sobreviver ao primeiro ataque de malária, quando comparadas com as crianças sem qualquer traço falciforme... "Provavelmente uma alteração bioquímica muito pequena pode conferir a uma espécie hospedeira um grau substancial de resistência a um parasito bem adaptado. Isto tem um importante efeito evolucionário. Significa que é vantajoso para o indivíduo possuir um fenótipo bioquímico raro [...] E significa, também, que é uma vantagem para a espécie ser bioquimicamente diversa e mesmo mutável em referência a genes envolvidos na resistência às doenças.”  - J.B.S. Haldane em 1949 ( perfeito !!!!!!! ) 

Mais tarde tudo isso ficou sacramentado pela óbvia correspondência geográfica entre a prevalência da malária e a frequência do gene falciforme na África.  Deve ficar bem claro, então, que a anemia falciforme não é uma "doença de negros" nem uma “doença africana”, mas sim uma doença eminentemente geográfica, produto de uma estratégia evolucionária humana para lidar com a malária causada pelo Plasmodium falciparum.  

Analogamente, a fibrose cística ou mucoviscidose é outra doença geográfica, desta vez européia, que emergiu como uma provável estratégia evolucionária de resistência à febre tifóide. Já a doença de Tay-Sachs, especialmente vista em judeus asquenazitas, parece estar ligada à resistência à tuberculose.  Mas deve ficar claro e evidente que a fibrose cística não é uma “doença européia”, nem a doença de Tay-Sachs é uma “doença judaica”. Altas freqüências da fibrose cística, por exemplo, já foram observadas em algumas populações do Oriente Médio e da África e a doença de Tay-Sachs é vista em elevada freqüência em canadenses franceses da província de Quebec.  Podemos, com esses exemplos, perceber o papel fundamental das doenças infecciosas na evolução do genoma humano e a notável importância do território endêmico dessas enfermidades na seleção de certos genes em determinadas populações humanas. É totalmente desnecessário invocar conceitos arcaicos como “raça” e “doenças raciais” para explicar a variação de prevalência de doenças genéticas em diferentes grupos populacionais.

Portanto qualquer estígma ou preconceito associado a uma doença específica tem que ser obrigatoriamente revisto sob o ponto de vista científico e humanista. Antes passamos por reflexões de tolerância e aceitação... Identificação de que a tolerância é, antes, expressão da aptidão para a paz, que exigência dirigida a outrem. Na realidade, é uma exigência para si mesmo...

Na Bíblia o livro do Apocalipse fala dos Quatro Cavaleiros: Morte, Guerra, Fome e Pestilência. De forma contemporânea lembrando dos conflitos na Irlanda do Norte, no País Basco, em Ruanda e nos Bálcãs no final do século passado e, após o 11 de setembro, a invasão do Afeganistão e do Iraque no início do século 21, acredito que vamos ter de adicionar pelo menos quatro novos cavaleiros à "tropa" do Apocalipse: Racismo, Xenofobia, Ódio Étnico e Intolerância Religiosa. Para combater esses novos inimigos da humanidade, precisamos promover na sociedade a valorização da diversidade em todos os seus níveis, iniciando em nossos corações e terminando nas ciências... Com uma foice em toda a intolerância!!!!

  " Para Conhecer O Mundo, Primeiro Canta A Tua Aldeia " (Dostoieviski)

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