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sábado, 14 de julho de 2012

Sobre o Morrer


 



Em diversas culturas, das mais simples até as mais complexas, a morte é ritualizada. O cerimonial inclui a reunião da família e amigos em torno do doente. Pode até acontecer do doente não morrer. Mas uma vez anunciada a doença segue-se uma peregrinação de parentes para a casa ( e de forma contemporânea para o hospital ) do "pré-morto". Alguns, os que moram mais distantes, mudam-se para a residência do enfermo e assumem as tarefas cotidianas. Deixando à família nuclear o cuidado de "velar o doente". Vai-se morrendo aos poucos e vai-se anunciando a morte. Se não morrer, ao menos valeu o ensaio...
 
Muitos defensores da Eutanásia costumam recorrer a esse modelo antropológico para justificar/qualificar a morte ritualizada, a morte assistida e a morte prenunciada como "boa morte". João Cabral de Melo Neto, com alma de poeta, já nos demonstra que o sentimento de morte, porém, é sempre igual. Boa ou ruim, é sempre "morte severina"



...morremos de morte igual mesma morte severina: que é morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia - de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida...



 
Mas esta visão diante da morte não é tão romântica. E foi o próprio romantismo quem mais dramatizou a morte. Há alguns Salmos (30, 31e 32), textos poéticos que são  fruto de uma cultura tribal, judaica - parte importante de nossa herança cristã ocidental - que demonstram que mesmo a morte ritualizada não é tão tranquila assim...
 
Em um dos salmos bíblicos, o autor exclama: "tu me curaste...fizeste subir a minha alma da região dos mortos, conservaste-me a vida, dentre os que descem à cova". Em outro, lemos:"sou como um vaso quebrado, esquecido como um morto de quem hão há memória". 
 
A luta entre a vida e a morte - e o mais importante a busca da superação da morte, sintetizada na Vida Eterna, fazem parte do imaginário judaico-cristão-ocidental.
 
Se queremos traduzir isto de uma maneira filosófica, o empirismo e até mesmo o pragmatismo, também são respostas humanas diante da morte.

Uma anedota extraída do humor judaico já demonstra um patriarca olhando a família em sua volta e perguntando, à beira da morte: "-Quem está no loja? ". Mais do que engraçado, traduz uma filosofia de vida de quem nega a morte, dia-a-dia, optando pelo movimento do capitalismo e pelo ritual do cotidiano...
 
Na Bíblia, o Livro de Jó também demonstra que a ritualização da morte não a torna mais palatável para o doente. Isso é importante para que nós possamos entender a razão pela qual no germe do Ocidente há uma postura diferente do "Oriente"... Nós, ocidentais e culturizados, não aceitamos com largueza a idéia de que alguém simplesmente possa desligar a consciência e abandonar a vida, rejeitando o casulo material e carnal no qual um ser espiritual estaria aprisionado. No fundo, lutamos contra a morte e pela vida, suspiro a suspiro, célula por célula, átomo por átomo e até espiritualmente...

René Descartes disse que a unidade de tudo estava na razão separada da matéria...
Comparava o corpo humano ( e o viver ) a uma máquina, e o doente era como um
relógio defeituoso... O homem passou a ser dois: Corpo e Alma... O que
era interessante tanto para a Igreja, como para Ciência. Descartes também
trouxe a concepção do conhecimento das partes, para entender o "todo".

Pois bem Senhores, parece que evoluímos muito, a partir dessa visão cartesiana da
medicina e do viver... sem contudo encarar o morrer com a mesma tranquilidade...

Michel Foucault soube detalhar, de forma primorosa, a vida e o indissolúvel que é o ser SER HUMANO... Apresentando um colorido distinto sobre a morte... trocando o "império do olhar" pela "arte de ver"... Sendo assim, vivenciar a morte é que permite a valorização de nossa existência, de nossa vida.

A morte não pode ser um pensamento sobre o porvir... ao contrário... o pensamento sobre a morte é um meio para realizar o grande circuito da memorização pelo qual totalizaremos toda a nossa vida e a faremos aparecer como ela é...

Para isso é necessário ao homem retornar, através da memória, ao passado e perceber o que ele construiu até então. Observar o que há de positivo ou negativo, e se for oportuno, reconstruir, perdoar, criar... Sendo assim, desde a vida ele poderá construir uma memória de qualidade, virtuosa, que o ensinará a morrer e que garantirá a verdadeira sobrevivência à morte.

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