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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Sangue e Responsabilidade Ética!!!

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Quente vermelho e denso, o verdadeiro “elixir da vida” nutre as células e desintoxica o organismo. Esta é provavelmente uma das melhores definições do sangue humano. Banhando todas as células, o sangue executa tantas funções que, sem ele, de nada valeria a complexa organização do corpo humano.Tudo isto sem citar as defesas do organismo contra os germes e agentes causadores de doenças, que também são transportadas e fazem parte do sangue.

Diante de um líquido tão precioso, todas as questões éticas, de forum médico ou não, que envolvem o sangue e seus derivados, tomam vulto e complexidade imensos, podendo transformar a mais simples transfusão de sangue em uma complexa reavaliação de nossa compreensão e respeito ao direito de liberdade de culto e crença.

Com alguma frequência nós médicos hematologistas nos deparamos com pedidos de transfusão em pacientes que professam a doutrina dos Testemunhas de Jeová. De imediato uma série de questionamentos surgem... Idade do paciente... doença que o aflige... urgência da transfusão... se há real necessidade do derivado sanguíneo... e finalmente: o quão tradicional ou ortodoxo é o paciente e sua família no cumprimento da doutrina dos Testemunhas de Jeová ?

Disse o gênio da física Albert Einstein:”devemos ter o cuidado de não fazer do intelecto nosso deus; ele sem dúvida tem músculos fortes, mas nenhuma personalidade”. O médico com seu pragmatismo intelectual e científico muitas vezes se deixa seduzir pelo - suposto - domínio sobre a vida alheia, principalmente quando esta vida está no seu limite. Utilizar deste poder sobre as decisões de nossos pacientes, adaptando as vontades dos enfermos aos nossos conceitos, desrespeitando as convicções mais arraigadas, em nome de uma racionalidade científica, infelizmente, é lugar comum na prática médica.

Em minha experiência, posso afirmar que a maioria dos médicos tem uma baixa compeensão sobre os Testemunhas de Jeová, considerando-os niilistas, ou seja, descrentes da medicina e sua ciência, o que tenho certeza não é verdade. Nós médicos tendemos a subestimar a importância desta proibição de receber transfusões. Para um Testemunha de Jeová a aceitação da transfusão sanguínea não é uma infração menor, podendo ser punida com a excomunhão da igreja, perda da chance de uma vida eterna e principalmente o término de seu relacionamento com a divindade.


Existem nos Estados Unidos vários centros de tratamento denominados “Centers for Bloodless Surgery” que proporcionam alternativas racionais a transfusão indiscriminada de hemoderivados. Estes centros de tratamento possuem médicos treinados em utilizar estratégias como hormônios estimuladores do crescimento das células precursoras do sangue, técnicas de diluição do sangue e transfusão autóloga intra-operatória - em que o paciente é transfundido com o próprio sangue. Infelizmente, no Brasil não dispomos destes centros, estando a limitação das transfusões determinada apenas pela capacitação individual do médico e sua equipe.

É sabido que grande parte das transfusões sanguíneas são desnecessárias e tratam muito mais o “exame laboratorial” do que o paciente. Importante salientar que um médico menos experiente, poderá transfundir um paciente valendo-se muito mais dos resultados impressos em um boleto de laboratório do que de um exame clínico bem feito. Nossa formação médica é deficiente na valorização dos hemoderivados, que são utilizados como parte da hidratação e não com o verdadeiro fim de manter o equilíbrio humano. A transfusão de qualquer componente sanguíneo deve ser encarada como um verdadeiro transplante de tecido vivo. Na prática diária encontramos colegas que transfundem seus pacientes para “encher o tanque” como se fôssemos verdadeiras máquinas, sem levar em conta os riscos inerentes de uma transfusão.

Diante de um enfermo que professe a doutrina dos Testemunhas de Jeová, todo médico deverá fazer uma decisão pessoal sobre o quão aceitável para ele é a convicção de seu paciente quanto a não receber transfusões. Caso não considere pertinente as convicções deste fiel, deverá, sem perda de tempo, referir ou transferir o paciente para outro médico que o aceite, não tentando, nesse momento, reverter convicções religiosas ou doutrinárias a respeito da transfusão sanguínea. Esta será, sem dúvida, a forma mais respeitosa de tratar alguém cuja convicção religiosa é total ou parcialmente antagônica a nossa concepção do binômio cotidiano-fé.

Embates jurídicos e de opinião pública são travados com frequência entre médicos e fiéis dos Testemunhas de Jeová. Com certeza o número destes confrontos poderia ser bem menor se houvesse respeito mútuo e aplicação de algumas normas básicas do código de ética médica em seu artigo n 56 “É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas terapêuticas...” Também deverá o fiel ortodoxo, procurar auxílio terapeutico com doutores conhecidos ou em centros médicos referenciados para suas exigências e se estes não existem, procurar organizá-los o mais rápido possivel, para tentar não se transformar em réu ou vítima de mais um duelo entre a ciência e a técnica racional de um lado contra a fé e a convicção doutrinária de outro.


Curioso que nossa sociedade ocidental, cartesiana e cristã, fundamentada em valores oriundos do derramamento redentor e sacrificial de sangue pelo nosso Messias, não tenha amadurecido o respeito e a capacidade de compreensão da fé alheia. Devemos sempre lembrar que fomos perseguidos na Palestina, atirados aos leões por Roma e que nossos reformaores foram banidos de várias sociedades. Não defendo o ecumenismo e tenho minhas convicções na reforma calvinista bem arraigadas, mas tenho certeza que o respeito religioso e a convivência pacífica inter-doutrinária é e sempre será um dos pilares para a evolução da ciência e da sociedade.

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