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quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Doação

Rafael, este era o nome. Como anjo ou melhor, como arcanjo... Ou seria um dos adjetivos de Deus? Não importa, importa que Rafael tinha leucemia. Com 11 anos tinha a forma mais avassaladora da doença. Leucemia, ou o sangue leitoso, completo de células brancas, os leucócitos. 

Já em quimioterapia há mais de 2 meses. Usando drogas com nomes complexos tendo mais consoantes que vogais. Estava careca e sem sobrancelhas o que ressaltava ainda mais os olhos pretos, vívidos. Duas jabuticabas grandes... A palidez da pele aumentava ainda mais a negritude dos olhos... estava anêmico, perigosamente sem sangue... Tinha uma deficiência grave de hemácias e plaquetas. As primeiras carregam oxigênio e levam vida a todas as outras células (sempre pensei no pulmão como exclusivo nessa tarefa - ledo engano) e as plaquetas que fazem o papel de "Super Bonder" da coagulação.

Rafael, 11 anos, estudava num colégio municipal de Sta. Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Não era bom aluno e tão pouco era dos mais comportados... Sua grande virtude era ser educado e solícito aos mais velhos... Criado pelos avós tinha adquirido uma visão respeitosa com todos que de alguma forma se pareciam com "Vozinha" ou "Vovô Biu"... avós que por descaminhos da vida tiveram que assumir o menino quando da morte prematura da mãe após um procedimento de aborto, numa clínica (clínica?) suspeita. Rafael tinha apenas 11 meses...

Não sabia ao certo quem era o pai mas os adultos sempre fizeram graça dizendo que Rafael era filho do Cleiderson, o dono da loja de ferragens no Cento de Sta. Cruz, próximo a estação do trem. Sua mãe tivera um caso com ele ha 12 anos. O comerciante tinha pouco mais de 40 anos e já era casado ha mais de 20 anos. Comentam que o casamento prematuro foi imposição do sogro que era sargento PM.

Por algum motivo, pouco explicado na época, Cleiderson mandou um bolo e dois pacotes de fralda no primeiro aniversário de Rafael. Sem presença e sem cartão. Nenhum outro aniversário teve bolo ou fraldas.

Rafael era acarinhado por sua avó - companhia permanente -  e pelos residentes de hematologia. Aos 11 anos seus olhos pretos tinham visto mais do que o necessário para alguém com sua idade, mas também tinha conquistado a afeição e solidariedade de outros olhos... Ganhava alguns presentes, roupas usadas, mas limpas e dignas... até um vídeo game de 2a mão ele ganhou...  Mas Rafael continuava com 11 anos, dois avós e uma leucemia.

Rafael tinha mais carências do que posses. No momento necessitava de transfusão de sangue e de plaquetas. Coisas que o Hospital do Fundão não tinha... O Banco de Sangue, elegantemente chamado de Serviço de Hemoterapia, vivia sua maior carência... Raros doadores se ofereciam e os que assim faziam não tinham o sangue compatível com o de Rafael...

Após algumas transfusões, Rafael, apesar de apenas 11 anos, tinha desenvolvido anticorpos no que sobrava de seu sistema imunológico. Fez com que as transfusões fossem ainda mais complexas e difíceis... Ele era "0 negativo" com inúmeros anticorpos de superfície.

Nenhum doador era compatível... vários tentaram... até Cleiderson tentara doar sangue, mas como era de grupo de risco e tivera comportamento promiscuo, teve sua doação recusada.

Finalmente apareceu um doador não conhecido por ali, como se surgisse do nada, fez os testes tranquilo e nem reclamou na picada da lanceta que furou seu dedo... o sangue pingou vermelho vivo, denso no pequeno dispositivo que verificou e constatou que não havia anemia... ao contrário, era, como diria Machado de Assis, um "rubicundo". Parecia mesmo um doador profissional. Pesado na balança, disse que não sabia bem qual era seu peso... Apesar de ser um mulato esguio e magro registrou exatos noventa quilos com um metro e oitenta e três de altura. Aferiram a pressão arterial e era normal... Em resumo, gozava de plena saúde.  

O doador não se recusou a responder qualquer pergunta, sempre solícito, natural, parecia muito verdadeiro, não era doador de riscos, não estivera em nenhuma área perigosa, não estivera preso e nem tivera amantes ou amigos presos, sequer tatuagens. A Enfermeira Fabiane só estranhou quando perguntou se ele tinha doado sangue e a resposta foi que sempre doou, em todos os lugares e para todos... inclusive ali, no Hospital do Fundão.

Nenhuma doação é personalizada, em essência, mas sempre se pergunta para quem está doando... "- Rafael, o menino de 11 anos com leucemia. Está internado na Hematologia Pediátrica. Aquele que tem anticorpos irregulares no sangue."

Foi "votar" o Ato de Auto Exclusão - obrigatório - quando teria que entrar em uma cabine e fazer a opção para afirmar, secretamente, Sim ou Não. Se por algum motivo não queria que seu sangue fosse utilizado em outra pessoa. Foi ali que Fabiane estranhou quando a máquina começou repetidamente a dizer a frase codificada pelo computador, que anunciava sempre que alguém votava.
"-Obrigado, Você pode estar salvando uma vida. Você pode estar salvando uma vida.Você pode estar salvando uma vida. Você pode..." O curioso é que o equipamento ficou repetindo isso por um bom tempo.

Enquanto a máquina repetia, Fabiane que conhecia Rafael e até tinha levado alguns brinquedos que recolhera entre amigos e em sua igreja ficou tocada de alguma forma. No braço do doador fazia todo o protocolo padronizado... passava o algodão com álcool enquanto examinava as veias mais calibrosas... Colocou a a cinta de látex, ou garrote, e fez as veias saltarem... colocou a agulha com delicadeza, perguntou se estava tudo bem, e o sangue farto e quase azul de tão denso, foi enchendo a bolsa... ágil e constante. Estranhara aquela doação rápida, quase um recorde. 
Fabiane retirou a agulha e antes mesmo de entregar o vale suco de uva com croissant, para se recuperar, ele virou a sala e ganhou o corredor da Cantina do Banco de Sangue e saiu.
Perguntou pra Dna. Madalena da cantina. Ela vira ninguém. Perguntou pra faxineira daquela área se tinha visto alguém sair... e igual... 

Ao final da tarde, por curiosidade Fabiane foi verificar o tipo sanguíneo e sorologias daquele doador... "0 negativo"... Plenamente compatível com Rafael, a despeito dos anticorpos.

Rafael, 11 anos, uma leucemia e tão poucas posses, tinha ganhado mais uma chance...
Curiosamente após a transfusão Rafael recuperou bem mais do que o esperado...As novas sessões de quimioterapia tiveram nenhum efeito colateral... e apesar de continuar careca, ele retornou com sua vivacidade. A todos chamava "tio"... e todos o tinham por sobrinho... 
Em pouco mais de 2 meses e sem qualquer outra transfusão veio a notícia: Remissão Completa! Rafael com 11 anos não tinha mais uma leucemia!

Passados dois anos, fazendo um trabalho de auditoria, Fabiane esteve em Santa Cruz, por imensa coincidência encontrou Rafael, agora com 13 anos, terminando o ensino fundamental e querendo uma vaga na escola técnica... Tinha uma cabeleira de dar inveja... Continuava magricelo, mas transbordava saúde. Falou com Rafael e trocaram lembranças. Ficou feliz em ver o menino com tanta saúde. Fabiane lembrou daquele doador incomum, lembrou daquele dia especial em que houve uma reviravolta na vida de Gabriel... voltou ao Banco de sangue para procurar nos arquivos o nome do último doador, aquele misterioso que desaparecera e que cedeu sangue ao menino.

O cartão com os dados básicos e obrigatórios do doador estranhamente tinha sumido, inclusive os dados sobre futuras avaliações sorológicas. No lugar em que deveria estar obrigatoriamente o adesivo com o código de barras das bolsas de sangue (plasma, plaquetas e hemácias) mais o código do doador impresso pelo computador e o número-identificação de praxe, lá estava um informação atípica: "Eu Sou"

Fazia sentido... 
O maior Doador estivera no Banco de Sangue...

Hoje Rafael tem 13 anos e uma vida plena!

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